Pernambuco- Nosso terceiro bordado
É curioso escrever enquanto viajamos. Curioso não é bem a
palavra mas não encontro outra no momento. É que é escrever e tentar dar
símbolo a algo enquanto você está rodando no turbilhão. Muito provavelmente as
impressões mudariam conforme o tempo. E tem sensações aqui que escrevi logo
após senti-las e outras que bem, nem sei quando! Havia escrito um texto sobre
Pernambuco. Já estava na metade mas perdi aqui no meio do turbilhão. Muito
provavelmente achei que estava salvo. Mas não estava. Talvez sejamos assim
também. Às vezes nos compreendíamos salvos mas era equívoco. E que bom!
São José do Egito
Começamos Pernambuco por São José do Egito. Para falar de São José do Egito é necessário dizer de poesia. De
novo e por isso. Dizem que lá é o berço da poesia, da rima, do improviso. Dizem
que tem o maior número de poetas por metro quadrado. Lá todo mundo tem um verso
engatilhado, balas de letras. A cidade é construída pela e de poesia. Lá no
hotel cada quarto tinha um nome de poeta em cima das portas, numa espécie de
benção. Lá no Beco de Laura, as poesias estão nas paredes, verso de tinta. Laura era uma
mulher que vendia doces por ali. Dizem que os meninos mangavam dela porque os
doces eram daqueles com muito açúcar, do tipo que a vó faz pra alegrar a gente.
Os meninos comiam e saiam gritando “água, quem tem água! água, água.” E dona Laura gritava e os meninos corriam! Lá
no beco de Laura não é um beco, tem saída. Acho que porque talvez a poesia seja assim, com horizonte aberto.
Numa das noites em que soprou o vento frio, fomos cantar
num restaurante, assim, despretensiosamente. Ajuntou gente, ajuntou mesa. Chegou
microfone, chegaram poetas. Cantamos nós, cantaram os que ali chegaram. Até
nossas crianças Miguel e Theo numa espécie de boemia infantil. Das boas. No
dia seguinte, o dia da apresentação,estavam todos lá com suas famílias e amigos.
Foi um dia atípico. Havia morrido o irmão do prefeito. A cidade estava com
aquela poeira de tristeza nas esquinas. Levamos Patativa para brincar numa
escola, num espaço aberto e que tinha dizeres de Paulo Freire também pelas
paredes. As paredes de São José do Egito sempre tem algo bonito pra dizer.
Pela estrada seguimos para Recife. Uma estrada bela descrita
num texto anterior aqui. Porém, antes de chegarmos em Recife, paramos em
Tacaimbó, mais precisamente na casa da
mãe do Dinho, dona Benedita. Pois imaginem uma festa!! Foi lá! Ela nos recebeu
com uma galinhada deliciosa feita em uma de suas louças de barro. Dona Benedita
é louceira.
“Eu nasci nos Tacás, sou filho do pote
Cravo e panela! Sou da terra verde.
Eu nasci nos Tacás, sou filho do fogo,
Pote e janela! Sou serra dos ventos.
Nasço seco, ventre cheio, sou boca de sertão.
Forjei no fogo um violão
Forjei na areia essa canção!
Eu sou de lá e vim pra cá
Tô aqui pra despedir.
Mistura tudo e vem pros cantos.
Cantiga seca, goela em pranto.
Benedita vem dizer, com quantos potes se fez você!
Benedita lenha terra e dos olhos chora pé de serra!”
Ficamos por lá numa tarde sem tempo. Lá no quintalzinho
cheio de bancos de Seu João Fulô, pai de Dinho, fizemos roda. Fizemos música. Cantamos Ave
Maria as seis da tarde. Cantamos forró pra Benedita dançar. Ela dançou bonito.
Dançou feliz no quintal da sua casa erguida pelas suas mãos. Chegou por lá
Ivanar Nunes, grande músico e amigo querido. Que bonita a festa, ó pá! Dava
vontade de ir embora não. É que Tacaimbó é pequenina, daquelas cidades que nos
acolhem e é cheia de história e é cheia de vida. Feito o Dinho mesmo. É que a
casa de Dona Benedita é casa de mãe e sentimos falta da nossa! É que tava bom
demais ficar ali. Posso dizer que choveu dentro da gente. Dentro e fora pois
era impossível não chorar. Nem que fosse um choro daqueles disfarçados e de
lágrima oculta. Choveu sim.
Recife
E chegamos em Recife à noite e com chuva. Chuva fora e dentro ainda. A praia de Boa
viagem é bonita com chuva ou sol, de noite ou de dia. Fizemos nossas
apresentações e nossa oficina no teatro Hermilo Borba Filho. Lá no centro de
Recife. Recife é das cidades que gostaria de morar. Nem que fosse por um tempo.
Nem que fosse na minha imaginação. Aliás nela, em minha imaginação,tenho também uma casa em Olinda,
bem próxima a Igreja da Sé. Lá me reúno com meus amigos e minha família e meu
amor. Lá fico olhando o mar e escrevendo e cantando!!
Estar uma semana no Recife é um furacão. É uma cidade que
brota coisa boa pelos caminhos e é quase impossível ficar em casa ou no hotel.
Conhecemos lá a Terça Negra, com rodas de coco e a Terça do Vinil, como diz o
próprio nome. Ambos na rua, aberto pra quem quiser chegar. Nossos amigos
queridos, que são tantos: Breno Fittipaldi, José Manoel, Vi Brasil, Galeana,
Giordano Castro e os meninos do Magiluth, Birigui, Adiel Luna, Rodrigo Felix,
Ana Flávia, Ricardo, Carminha. É muita gente boa!!! É muita
gente talentosa e bacana.
Passamos uma das noites na casa de Adiel Luna e
Alexandra. É bonito demais ver gente tocando. Gente que é poeta nato
e improvisador dos bons. Foi um prazer e uma alegria. Assim como ser recebido
por Ana Flavia e Ricardo em sua casa também. E depois nos levar para uma
terreirada em Olinda, num coco de raiz que fez a gente brotar suor de tanto
girar! Ficaria horas falando dos amigos todos. E certeza faltou gente aqui.
Agradecemos a todos pela semana tão rica pra nós.
Em todos os dias de apresentação tivemos sala lotada com
gente voltando pra casa. Apresentamos numa sala em que as paredes são de
tijolos aparentes. Era uma sensação de extensão mista e contínua.
Para essas
apresentações tivemos o caldo apimentado por Birigui (ao lado), poeta sensível e que
parece que fala com aquelas letras que vem desde o começo da humanidade.
Bririgui (que assina por David Henrique) falou suas poesias durante o cena do
baile, cada dia uma, cada dia uma beleza diferente.
E é difícil falar de Recife. É algo como falar de alguém já íntimo e que conhece nossos segredos e vontades. Fica sempre essa sensação de estar falando dos que são nossos. É que Recife habita coração antigo. E então percebo que falar, que escrever, é pouco. Não atinge o sabor do peito. Mas assim vai. É assim que vamos.
Apenas por enquanto. Despedida.
E no Recife terminamos um ciclo, nosso formato primeiro. De lá partiu pra São Paulo, Marcos Coin, Fabiana Barbosa, Theo e Miguel Retti e Fábio Retti. Foi com choro "mas é de felicidade", como disse Miguel, "felicidade por tudo o que a gente passou". O coração da gente ficou mais apertado. Poder conviver com esses dois meninos tão queridos fez uma marca no que compreendo por teatro, e por amizade e pelo "bom encontro", de Spinoza. Obrigada pela companhia deliciosa! Acho que essa é uma daquelas sensações do turbilhão que só decodificarei mais tarde, talvez numa manhã tranquila olhando o mar. Talvez ali eu absorva alguma medida desse encontro.
fotos de Alécio Cezar, texto Karen Menatti.