Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto
Sob o céu estrelado paramos na estrada. Poeira nos olhos,
um pouco de frio. Nebulosas e estrelas
tão infinitas quanto o silêncio. Silêncio esse quebrado por uma ou outra
risada. Ou muitas, às vezes muitas. A van não subia. Estrada de chacoalhar
gente. Até chegar o caminhão para
puxá-la com uma corda ficamos ali, a cachaça na mão, o infinito nos pés. Nossa volta foi assim. Teria que ser especial.Estávamos em terras de Beato Zé lourenço.
O entardecer no Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto é
único. Clichê, mas sim , é único. Aquele alaranjado que brinca com o céu de
algodão doce, num salpicado sem tempo, sem pressa, sem expectativa. Seu Raimundo,
o cuidador do Caldeirão mora lá, com Dona Maria e os cachorros. Teve 14 filhos. Está lá no
tempo sem tempo de quem diz com as letras do olhar aguçado: “Aquele que não
trabalha sempre quer comer mais do que aquele que trabalha, num é?” É. Também
acho. Seu Raimundo e Dona Maria!
Emprestaram sua casa, seu chão pra receber a gente. Assim como Dane de Jade com
sua Beatos nos deu as mãos, a alma, a ajuda para conseguirmos realizar esse
ponto-cruz do nosso bordado. “Se eu me chamasse Raimundo seria uma rima não
seria uma solução”
“Vou contar uma istóra que eu num sei como cumece.” É que
o desejo de dividir aqui vai e vem como se estivéssemos com essa experiência
atravessada no peito, feito faca-flor.
Do público, das crianças.
Não consigo achar uma palavra à altura. A cada
caminhão, cada carro que traziam as pessoas, cada um que ali descia... Foram amigos que chegaram, os de longa data e
os de agora. Tivemos a alegria de ter na plateia os companheiros do
Assentamento 10 de abril, do MST. As senhoras e senhores que com seus suores
rasgaram caminho para a redescoberta do Caldeirão. Vieram grupos de teatro,
jovens e crianças. Novamente as crianças. Agora Theo e Miguel também tem seus
chapéus e vozes dentro da lona. Ontem Miguel , de dez anos de idade e
provavelmente 60 de sabedoria, disse estar nervoso com sua estreia. Imaginem,
estrear no Caldeirão, a céu aberto, olhando as milhares de estrelas que ás
vezes pareciam despencar do céu.
(insisto nelas porque nos acompanharam durante essa travessia). É pra poucos
Miguel, o bom encontro que você teve com essa espécie de benção humana. Theo também nos indicou o caminho até a casa
do poeta Antonio Gonçalves da Silva. Assim, sem ensaio, com aquela disponibilidade que o brinquedo tem, entrou no palco com seu chapéu preto e
apontou: “A casa do poeta? É só virar a esquerda e seguir direto.É ali!” . Obrigada Theo,
seguimos seu conselho e chegamos lá. As
crianças agora é que “arrumam o Brasil” na cena em que recolocamos os sinos no
contorno do mapa, depois do conflito. Será mesmo isso? Uma metáfora
concretizada na forma- conteúdo da criança que arruma um país depois de seu
desmanche. Talvez seja cíclico. Talvez
assim mesmo, como disse um jovem rapaz no final da peça. Segurando um
sino-chocalho tomou a palavra para dizer que se sentia com o futuro nas
mãos.
Da poeira no horizonte.
Imaginar que houve essa mobilização é de marejar os
olhos. Digo isso porque o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto fica distante da
cidade. Embora no Crato, está localizada num vale de beleza pura, morros, rios,
açudes. “Eu nasci ouvindo os cantos das aves da minha terra, e lendo os lindos
encantos as aves bonita encerram.” Uns bons 40 minutos de carro da estrada até
lá. Um caminho de terra, arrudiada de verde. Portanto, quem foi até lá se preparou
para o encontro. Não há condução pública. Foi um combinado entre as
instituições, entre a secretaria de cultura do Crato, na voz de Dane de Jane e
de muitas pessoas que a ajudaram. Portanto também uma contradição pensar que
ali, naquele local afastado morreram em torno de 1.000 pessoas. Qual perigo
concreto essa comunidade oferecia? Na década de trinta chegar por essas
paragens provavelmente era ainda mais complicado. Oferece perigo um povo que
“ora e lavora”? Que planta sua comida, que vive essa espécie de auto- gestão
distante da grande cidade? Do ponto de vista de quem perde sua mão de obra
escrava ou semi-escravagista (se é que podemos chamar assim) é uma afronta.
Melhor mandar mandar matar, não é? “Mas eles não tem armas?” Poderia ter
indagado alguém. De que importa! No final das contas sabemos que muitos irão
dizer que os matutos da região inventaram tudo isso,” inventaram essa história
quando viram um avião passar atirando em umas vaquinhas, e aí, sem querer os
tiros acabaram pegando em algumas pessoas”, como chegamos a ouvir uma vez de um
homem que nos acompanhava. Sempre encontra-se um jeito de distorcer a voz de
quem lê as “coisa da vida”. Mas como numa microfonia insuportável ela acaba
incomodando alguns, com sensibilidade na audição histórica. Ou nas mãos, como do pessoal do assentamento
que reencontrou o caminho para o Caldeirão, que claro, tem a parecência dos que
lutam contra esse sistema cruel no qual vivemos.
“Por aqui ninguém passou, ninguém chegou nem viu aquela cena
de horror que um rico nunca assistiu.”
Dos momentos.
Ali no chão do Caldeirão também encontramos a Baleia do
Graciliano. Talvez tenha sido nela a inspiração tardia do poeta. Essa Baleia,
por nós assim batizada, magra, mancava de uma perna. Havia sido atacada por um
tamanduá. As unhas do bicho cravaram sua pata. Seu Raimundo teria que cortar
alguma pata; cortou a do tamanduá para salvar o cachorro. Preferiu sacrificar o
maior em razão do mais fraco. Ela atravessou a cena enquanto nós nos sentíamos
atravessados pelos antecessores daquele solo.
Ali naquele chão ficamos tentando compreender a acústica
acolhedora do lugar. Podíamos falar baixinho, sem esforço que éramos ouvidos em
qualquer parte do terreiro em que
montamos a peça. As vozes, os instrumentos chegavam até as estrelas e voltavam
pra nós. Sem esforço, sem obstáculo. A placa da nossa rádio Caldeirão foi
fincada no telhado da casa vernacular: de um lado a casa e do outro a Igreja
Matriz reformada. Ao olhar meus amigos e
companheiros de cena na frente daquela casa a imaginação voava longe; eram
todos eles caldeirões. E eu também. Um caldeirão que pode ser duro por fora mas
que tem água por dentro. Tem casca dura para levar líquido vital. Água que hoje
tem dono, paga-se caro e fica-se sem. É preciso a casaca dura para aguentar o
tranco.
Ali no chão cantamos Ave Maria. E dessa vez na frente de
outra Igreja: a matriz de Assaré agora tornou-se a Igrejinha do Caldeirão. Ali
o sino tocado por Maurício Damasceno com seus belos apetrechos de percussionista
virou realidade. Tocou então o sino da
Igreja, no alto da escadaria de entrada. As badaladas do sino da Igreja ecoavam
naquele vale de entro de cada um de nós.
Dos amigos.
A construção de uma peça nunca é só e nunca é rápida. São
necessários muitos encontros, brigas, descobertas, risos e sobretudo o
inusitado e a afeição mútua pelo que vai ser falado. É preciso que o tema goste
de você assim como você dele. Cantamos no Caldeirão com e para nossos amigos
que não puderam colocar suas vozes ali mas estavam em cada tijolo por nós
montados.
Cantamos para Jonathan Silva, Aloísio Oliveira, Thaís
Pimpão, Rogério Tarifa, Danilo Mora,
Lilian de Lima, Silvana Marcondes, Juliana Gomes, Frei Betto, Paulo
Freire, Ilo Krugli, Ana Maria Carvalho.
Cantamos com Cris Raséc, que teve sua família não só em Fortaleza mas também ali no Caldeirão. Reencontrando os seus. Reencontramos Monique, Dadá. Amigos de chão e coração.
Cantamos com os meninos que ainda hão de vir.
Das despedidas.
Enquanto escrevo esse texto estamos nos encaminhando para
a Paraíba, especificamente para João Pessoa. Uma viagem longa , que leva entre 10 a 12 horas
dependendo do inesperado. Uma viagem longa como esse texto. Mas de fato acho
que são importantes as escritas longas também. Numa conversa para uma
entrevista que demos para uma amiga querida em Fortaleza, a Roberta Bonfim, ela
nos contou que durante uma pesquisa foi descoberto que o tempo que uma pessoa
se “prende a uma leitura” ( como se fosse castigo, prender, de amarrar!) na internet é de 10 minutos, no máximo.
Ficamos todos assustados, inclusive ela. Num mundo em que é bonito ser efêmero
isso não seria de se surpreender. Mas continua me surpreendendo. E às vezes tem
que ser longo porque é o tempo da maturação, da pista cheia de curvas, tempo de
partir que parece infinito e curto ao mesmo tempo. Nessa apresentação nos encontramos
com Thiago França que tocou e brincou e já seguiu viagem. Logo mais nos
encontramos. Talvez Recife, talvez Maceió. Nos despedimos de Martha, nossa
produtora que nos acompanhou com sua beleza e carinho durante essa primeira
estada. Logo mais nos encontramos. Talvez BH, talvez Recife. Nos despedimos
também de Flavio Barollo que nos acompanhou para o documentário que estamos
criando. Logo mais nos encontramos. Talvez Recife, talvez São Paulo. Ele, que é
meu companheiro de amor, deixa um pedacinho de mim assim... vazio. Viro metade.
Mas é assim, a casca durinha e água vertendo.
Na metade desse texto avistamos
uma placa com a chamada da próxima cidade : Barro. “Debaixo do barro do chão da
pista onde se dança...” E agora no seu finalzinho já avançando pela Paraíba somos acompanhados pelo filme Cine Paradiso que passa na pequena tela do ônibus.
Ponto do bordado Ceará.
Ali, no Caldeirão da Santa Cruz do Deserto fomos
atravessados. Suspensão de tempo.
Obrigada! Agradecimento profundo por estarmos ali.
“Quem foi que falou que o Caldeirão acabou?
É bom avisar, Caldeirão nunca vai acabar!”
Karen como deixar a alma falar diante dessa alma que transborda vida que segue?
ResponderExcluir