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domingo, 18 de abril de 2010

“Concerto de Ispinho e Fulô”: Patativa por caminhos sonoros.

Por William Guedes

Com razão se pode dizer que certa obra poética é música, com muita razão se pode dizer que é poesia o canto de Patativa do Assaré, o lavrador. Essas verdades, mesmo sendo paradoxais, se avalizam bem, porque a arte tem mesmo muitos caminhos. A arte escapa ao indecifrável sendo fugidia quanto à sua definição e por isso é paradoxal.

Patativa se orgulhava de ser meio cego como Luiz de Camões e era meio analfabeto como seus irmãos de sertão. Paradoxo? Sua imaginação fugidia encontrou alternativas para enxergar muito além dos limites do Cariri e para empreender nada menos que a leitura do mundo.

O Concerto de Ispinho e Fulô é arte teatral no mais profundo sentido do termo, encena Patativa do Assaré acessando muitos caminhos sensíveis, caminhos que têm mesmo cheiro e gosto de cajuína, café e cachaça. Mas o “concerto” envolve o poeta em sua própria musicalidade e é aí que a obra literária reencontra seus “caminhos sonoros”.

Tomo da arte a prerrogativa da liberdade para chamar de “caminhos sonoros” aquilo que a teoria literária designa por “oralidade”. Não se trata de agregar valor poético às minhas observações, e sim de olhar para a oralidade na obra de Patativa através de um prisma, ampliando gradativamente, até o infinito, a abrangência desse conceito.

Tal como é utilizada nos estudos literários, a palavra oralidade é a ferramenta terminológica usada para acusar, numa determinada literatura, a existência de elementos da coloquialidade, que a identifiquem com a cultura oral. É como, numa busca obstinada por alguma concretude, a tentativa de surpreender na escrita entidades que só podem ser ouvidas. Sob uma perspectiva tão restrita, oralidade pode designar a utilização meramente estilística de tais elementos em obras concebidas e observadas na textualidade, ou seja, que mantêm apenas uma relação artificial com a cultura oral.

O termo pode alcançar uma perspectiva mais ampla se considerado desde o ponto de vista da sociologia, de onde parece fundir-se com tradição e, aí sim, abarcar a designação de obras como a de Patativa e outros cantadores ou cordelistas. Dali se contempla uma dimensão presente na gênese da criação, e não somente no conteúdo formal dessa ou daquela obra. Contempla-se a maneira pela qual, de pai pra filho, de boca em boca e através de suportes sensíveis, chegaram até o artista, os contornos formais, procedimentos performáticos, conteúdos sonoros e expressivos que representam, a um só tempo, o substrato de sua arte e seu legado.

Somente para submeter o conceito de oralidade a uma última refração, a psicologia pode emprestar-lhe uma dimensão infinita ao aproximá-lo do conceito de inconsciente coletivo. Isso concebe oralidade como a existência de uma estrutura, formada ao longo de séculos, que formata inconscientemente o entendimento de pessoas pertencentes a uma mesma comunidade e funda a possibilidade de uma comunicação desembaraçada entre o artista e seu público neste ambiente. Tal dimensão ilumina não somente o processo criativo de artistas populares como Patativa, mas também revela algo sobre a possibilidade de depreensão e sobrevida deste tipo de arte, que está baseada em suportes sensíveis tão subjetivos como a memória, e supostamente frágeis, se comparados com o suporte da escrita. A estrutura formal de muitos poemas de Patativa testemunha anacronicamente a sobrevida de procedimentos composicionais parnasianos. Com a diferença de que, agora, sob a rigidez dessas construções poéticas encontram-se, muitas vezes, conteúdos de grande engajamento político. Sua métrica e sua rima ecoam com naturalidade e familiaridade nas vozes e ouvidos por todo o sertão do Cariri, e continuam a reivindicar com isso a sobrevida daqueles conteúdos formais no presente.

Patativa, lá pelos fins de sua vida, já andava meio surdo, como Beethoven. Paradoxo? Ao longo de sua trajetória o poeta já havia forjado na matriz sonora a expressão mais marcante de sua arte. E também aqui os conceitos continuam se estendendo ao infinito, a matriz sonora do poeta extrapola os elementos audíveis. Para quem já não tinha quase ouvidos, como Beethoven, e já não tem sequer corpo, como a própria arte, não há pretensões de concretude. A matriz sonora do poeta sobrevive pairando em Assaré como estrutura, forma e memória, e em São Paulo, paira como uma sonata inteira, em todos os seus paradoxos na forma do Concerto de Ispinho e Fulô.

William Guedes

12 comentários:

  1. Belo texto, muito esclarecedor e reflexivo. Acho interessante como nos surpreendemos diante da universalidade do regional e da "erudição" do popular.Patativa é um desses narradores permanentes, no melhor sentido da expressão, pois reúne o corriqueiro, o poético e o épico. Transpõe tudo isso para uma atualidade, muito bem capturada pela Cia.do Tijolo. Tenho certeza, mas vou conferir. Abraços! (Márcia Fernandes)

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  2. Talvez o mais surpreendente seja como as pessoas se surpreendem quando deparam com pessoas aparentemente "não qualificadas" e que fazem aquilo que somente as "qualificadas" conseguiriam fazer.

    Arte é coisa de alma e talento, nem sempre necessitando de estudos para se materializar.

    Enquanto estas pessoas encaram o horizonte pela ótica das regras e assim o limitam em apenas parte de sua vastidão, aqueles que acreditam na capacidade natural dos artistas vão conhecendo um mundo mais amplo, mais bonito e, com certeza, mais justo, onde classes e castas dão lugar ao talento.

    E talento, com certeza, não tem regra ou classe social, é apenas talento, venha como e onde vier ...

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  3. Lindo o espetáculo de vocês, me emocionei em muitos momentos, cantarolei quase tudo e ainda tomei um cachacinha de quebra. Perfeito para uma noite conquistense. Voltem sempre.

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  4. Voltem sempre a Vitória da Conquista.

    Muuuuito lindo o espetáculo!
    Parabéns, e obrigada pela oportunidade
    =)

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  5. Obrigado!!!
    Tive uma noite encantadora como a muito tempo não tinha, foi emocionante.
    voltem sempre a Dourados/MS.
    "Eu vou ficando por aqui
    Que deus do céu me ajude
    Quem sai da terra natal
    Em outros cantos não para
    Só deixo a minha Dourados
    No último pau-de-arara"

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  6. Vocês são a coisa mais linda desse mundo!
    Deixaram meu coração com gostinho de cajuína.
    Um afeto fundo de um passo tão curto dado aqui em Passo Fundo.
    Retornem! Retornem! Retornem!

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  7. Sou de Alegrete e tive o privilégio de assistir o espetáculo de vocês...ficou na memória...vocês estão de parabéns, é um misto de alegria e tristeza, toca fundo na alma.
    Um grande abraço a todos, sucesso!!!!

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  8. Oi! Meu nome é Samantha Farias eu tenho 17 anos, assisti a peça de vcs no sesc. Bom, quero parabenizar vcs pelo espetáculo maravilhoso, na minha opinião a melhor peça do palco giratório. Desejo a vcs muuuito sucesso. Beijos e abraços

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  9. Sou Brasileiro, Carioca e amante da brasilidade.

    Adorei este trabalho "Concerto de Ispinho e Fulô" e recomendo a todos que ser orgulham de ser BRASILEIROS!!!

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  10. Fui ao Caixa Cultural ontem "no escuro". Queria assistir a alguma coisa, nem sabia da peça. Vi o cartaz, chequei o horário, comprei, entrei e me deparei com uma das melhores encenações dos últimos tempos. Adorei. Quero assistir mais umas 20 vezes. Parabéns!!!

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  11. Sensacional, pude sentir todas as sensações possiveis, chorei, sorri, me arrepiei, assustei. Fantástico.

    Parabéns a todos.

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  12. Olá pessoal, sou professor de literatura aqui de Maringá, acabei de voltar do teatro que vocês fizeram na UEM e passei apenas para dizer que o trabalho de vocês foi primoroso, a peça está impecável, nada sobra, há uma harmonia tremenda entre todas apartes que a compõem. Fiquei fascinado com o trabalho de vocês.
    Sem dúvida uma das melhores apresentações que pude presenciar atualmente.

    Parabéns mesmo!! Sucesso a todos!!

    Fabrício César

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